Só por esta noite





"É tão ruim não saber o que se quer da vida..." Pensava Karen no seu íntimo enquanto tentava dormir em sua desconfortável cama no quarto de empregada. 
A insônia lhe consumia e, mesmo com todos os músculos de seu corpo doloridos e cansados do esforço de mais um dia de trabalho, seus pensamentos agitavam sua cabeça como se estivessem numa festa have. Mas não eram pensamentos alegres... Eram pensamentos amargos... alucinados...
Karen era jovem, bonita. Uma beleza exótica que resultou da mistura de índios, negros e brancos, bem característica do Brasil. E como toda jovem vinda de família humilde, ela tinha sonhos; sonhos de uma vida diferente, com mais conforto, mais dinheiro, mais "glamour".
Desde que começou a trabalhar como doméstica na casa de ricos, ela viu que a diferença entre a sua vida e a de sua patroa era enorme. Antes, só tinha visto a vida dos ricos através das novelas. Mas estando ali, convivendo com eles e vendo todo conforto e facilidades que possuíam, ela logo "traduziu" que aquilo sim é que era vida! Mas, ao mesmo tempo que era grata por ter conseguido um bom emprego e ter saído da miséria em que se encontrava quando chegou na cidade grande, ela também sentia uma mágoa em seu coração, pois no fundo achava que merecia muito mais.
Para as pessoas de seu bairro e para seus familiares, Karen era uma sortuda. Tinha um bom emprego e não ganhava mal. Era moça trabalhadeira e estava noiva de Daniel, um bom rapaz que com muito esforço trabalhava numa fábrica, estudava à noite engenharia em nível técnico mas sonhava com o diploma universitário e, é claro, com o casamento com Karen, a quem ele amava sinceramente.
Mas para ela não parecia o suficiente... Ela amava Daniel, mas ultimamente andava confusa. Pensava na vida que teria com ele... Seria com certeza uma vida de sacrifícios, contando moedas e vales transportes... O que seria dos filhos? Escola pública... Hospital público... Filas e filas para só ouvir "não"... Olhar vitrines e passar vontade, tendo que dizer pra vendedora, toda sem graça: "Estou só dando uma olhadinha." E ficar com os restos (e olha lá) enquanto poucos aproveitam o que há de mais bonito, mais moderno, mais confortável e mais caro... "Não é justo!", pensava.
Não aguentando mais se debater na cama, ela se levantou e foi até a cozinha beber um copo d'água. "E pensar que meus patrões estão viajando, curtindo a vida... E eu aqui... Não é justo!" Como os outros empregados estavam todos dormindo, com passos pequenos e lentos ela se dirigiu até o quarto do casal. Se enfiou dentro do closet da patroa, admirando todos aqueles vestidos e sapatos que muito provavelmente ela jamais teria. Tirou da arara aquele que ela mais admirava e que parecia chamá-la: um tomara-que-caia vermelho... /sexy... /chique. Não resistiu e o vestiu. Pegou um lindo sapato que deixava os dedinhos de fora. Nem sabia o nome, mas com certeza era de grife e era isso que importava. Se olhou no espelho e se viu linda! Mas faltava algo... A maquiagem, claro! Resolveu também usar a maquiagem caríssima da patroa. Empolgada, carregou demais nos olhos e na boca, mas, como uma criança curiosa, estava brincando de descobrir um novo mundo. E nessa brincadeira ela foi usando tudo: acessórios, perfumes, até a langerie! Se olhava no espelho e adorava o que via; o tempo todo se imaginava no lugar da patroa.
Foi quando seus pensamentos começaram a explorar possibilidades perigosas. Pensou que poderia, sim, experimentar a sensação de ser rica nem que fosse somente por aquela noite. Animada com a idéia e sem pensar muito, resolveu colocar em prática seus pensamentos mais loucos. Tinha algum dinheiro, que daria pro táxi, para um drink e só. Seria algo inocente, pensava enquanto já éstava na rua, toda produzida. Seria apenas um drink num lugar agradável e só. Que mal teria? Depois era só lavar as roupas e a patroa nem notaria...
Dentro do táxi o motorista, de olhos arregalados com a exuberância da moça, perguntou qual seria o seu destino. "Onde você acha que uma garota assim como eu se diverte numa noite quente de sábado aqui na cidade?", respondeu incorporando uma personagem fictícia. Ele a olhou pelo retrovisor examinando bem o modo como estava vestida, a maquiagem carregada, e sem dizer nada, a deixou na porta de uma boate bem badalada. Ela gostou do lugar pois parecia ser o que ela procurava, com muitas mulheres e homens bonitos, parecendo se divertir bastante. Muitos "coroas", verdade, mas charmosos, parecendo serem "da alta".
Ao entrar na boate, enquanto passava sentiu muitos olhares masculinos em sua direção, e isso a deixou excitada, se sentindo "poderosa". Procurando imitar os gestos finos da patroa, sentou-se delicadamente numa mesa perto do bar e pediu o drink. Enquanto esperava, percebeu que um homem bem bonitão, por volta dos 40 anos, a olhava com mais afinco. No começo, ficou um pouco tímida, mas depois pensou (a fim de se convencer definitivamente):"Quem está aqui não é a pobretona da Karen! Tenho que esquecê-la, só por esta noite! Hoje sou rica, sou chique e sexy!" Fingindo naturalidade, resolveu retribuir os olhares sem pudores. Um momento que durou pouco, pois logo o homem se aproximou e perguntou:"Se não estiver esperando por alguém, posso me sentar com você?" Ela já ia dizendo não, afinal aquilo não estava em seus planos, mas lembrou-se novamente de que não era a Karen! Surpreendendo-se com a própria ousadia (que ela pensava não possuir) respondeu de forma sensual:"Na verdade eu estava esperando por você!" O rapaz também se surpreendeu com a resposta. Gostava muito de mulheres assim, diretas no assunto. Começaram um papo muito agradável, e cada vez mais Karen se surpreendia com o homem, que era muito educado, e com ela mesma, que se mostrava desenvolta, elegante e ousada como sempre quis ser mas nunca teve coragem antes.
Já um pouco "alta" com o drink pois não estava acostumada a beber, ela viu que era hora de ir embora. Mas a conversa estava tão agradável... O homem era tão gentil, tão diferente dos pobretões que ela conhecia... Então ela foi se deixando envolver, aceitando mais uma bebida... Ficando cada vez mais "disponível"... até que percebeu que passou da conta. Tentou se levantar para ir embora às pressas, mas não conseguiu dar um só passo. "Deixa que eu te levo embora!", disse o rapaz, com olhar malicioso. Vendo que não tinha alternativa, ela aceitou. Entrou no carro dele e no caminho foi recuperando a lucidez, pois viu muito bem que ele tomou a direção oposta de onde ela morava e, além do mais, lembrou-se de que ele nem perguntou onde ela morava... Caiu em si quando viu que ele parou na recepção de um motel. Deus! Ela nunca tinha ido para um motel em sua vida! Mas para evitar uma gafe, fingindo naturalidade novamente, se deixou levar pela personagem que criou. No fundo ela queria, sim, aproveitar aquele momento, sempre quis, pois não era mais "A Pobretona".
Chegando no quarto, meio sem graça, ela se enfiou no banheiro, talvez para tomar coragem de fazer o que iria fazer. Sabia que aquilo tudo já tinha fugido há tempos de seu controle. Voltou para a cama onde o rapaz, com olhar ansioso e mal intencionado a esperava. Mal deu tempo de dizer palavra, e ele pulou em cima dela como se ela fosse uma presa e já foi logo arrancando sua roupa sem nenhum cuidado. Ela pedia calma, mas ele parecia não ouvir.  A jogou de costas e a possuiu como um animal feroz, com muita brutalidade. Ela, assustada com aquele ato, começou a gritar e se debater, mas de nada adiantava. Ele tampava sua boca com muita força enquanto a humilhava com palavras baixas. Muito arrependida e desesperada, Karen só pensava em Daniel enquanto densas lágrimas rolavam por seu rosto... Aquele homem antes tão gentil, tão educado, se transformara num monstro! Como ela podia ter feito aquilo com seu amor? Justo com Daniel, que sempre foi tão carinhoso, desde a primeira vez... e tinha sido o primeiro e único homem de sua vida...
Ao acabar, o homem caiu para o lado deixando Karen ali, jogada, destruída, humilhada... "Não chore, meu bem, você é muito gostosa!", disse ele com voz ofegante, enquanto acendia tranquilamente um cigarro. Ouvindo aquilo, ela correu para se trancar no banheiro. Não acreditando no que havia acontecido, chorou mais e mais diante do espelho. Entrou no chuveiro e começou a esfregar com violência sua pele, como se se sentisse muito, muito suja. Ficou  tempos no chuveiro, remoendo aquela dor.
Quando saiu, para sua surpresa, o homem não estava mais no quarto. Mas em cima da cama havia um bilhete e seis notas abertas de cem reais:"Geralmente pago 300 para as outras putas, mas você gostosa, eu achei que merecia muito mais."

Gisele Moraes


*Este conto foi baseado em fatos reais. Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos verdadeiros personagens.

Comentários

Eve disse…
Oi Gi,
Que talento heinn! Apesar de ser uma história dramática, está muito bem escrita! Parabéns!!!

Beijocas!

Eve

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